Famílias simultâneas
Família simultânea é o termo cunhado pela doutrina para indicar uma situação em que uma pessoa, não necessariamente o homem, convive com outra pessoa, não necessariamente uma mulher, em dois núcleos distintos e simultâneos. Ou seja, é a família constituída por dois núcleos familiares, sendo que um de seus membros é comum a ambos.
Nesse contexto, importante ressaltar que, em qualquer situação que haja filhos, a proteção constitucional da prole implica igualdade de todos, independente de sua origem. Todos os filhos terão ampla e integral proteção que o direito lhes confere.
Contudo, com relação às pessoas maiores e capazes que mantém uma relação de afeto, com comunhão de vida, seja essa relação hétero ou homoafetiva, o Direito de Família, em tese, não tem qualquer aplicação, pois se trata de concubinato, expressamente excluído das formas de criação de família.
A relação entre concubinos será regida pelo Direito das Obrigações, ou seja, mediante prova do esforço comum o patrimônio adquirido por um dos concubinos poderá ser partilhado[1].
Entretanto, vale trazer à baila que a boa-fé vigora no direito pátrio. Como se sabe, a boa-fé é privilegiada, inclusive nessas situações, perante o direito de família. É a putatividade que o Direito de Família adota como forma de não punir aquele que desconhecia o vício ou a mácula que corrompia o próprio casamento.
A ignorância ou desconhecimento do fato (portanto a situação é efetivamente de boa-fé subjetiva) garante a concessão dos efeitos do casamento válido. Quem agiu de má-fé não tem a mesma sorte: o casamento não produz efeitos para ele.
A decisão do STF, por 6 votos a 5, afastou a noção equivocada de famílias paralelas no direito brasileiro. No caso concreto, houve o reconhecimento judicial da existência de união estável do falecido com uma mulher e, posteriormente, requereu-se o reconhecimento de uma segunda união estável, agora homoafetiva, para que o companheiro do falecido fizesse jus ao benefício previdenciário decorrente da morte.
Ocorre que o Direito brasileiro, à semelhança de outros sistemas jurídicos ocidentais, adota o princípio da monogamia, segundo o qual uma mesma pessoa não pode contrair e manter simultaneamente dois ou mais vínculos matrimoniais, sob pena de se configurar a bigamia, tipificada como crime previsto no art. 235 do Código Penal.
Nesse viés, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a monogamia é um valor que permeia todas as relações familiares no Direito brasileiro. Que a monogamia, sob a forma de fidelidade (casamento) ou lealdade (união estável) é valor fundamente do Direito de Família no Brasil.
Conforme trecho da decisão, com repercussão geral, “a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.
Ocorre que há entendimentos e pensamentos contrários à decisão. Maria Berenice Dias nos lembra que a imposição da monogamia serve para que o Estado consiga disciplinar melhor questões patrimoniais, sucessórias e econômicas, mas que não cabe ao Estado impor essa forma de viver às pessoas.
Para Maria Berenice Dias, “O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo” (DIAS, 2016, p. 204).
O Enunciado 4 do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, determina que “A constituição de entidade familiar paralela pode gerar efeito jurídico”.
Assim, veja-se que existe a possibilidade de relativização do princípio da monogamia. Esse fato gera uma série de consequências, naturais de obrigações familiares, como dever de assistência, de prestar alimentos, direitos hereditários etc.
Para Paulo Lobo, o Princípio da Monogamia não pode ser aplicado à união estável, in verbis:
O princípio da monogamia é apenas aplicável ao casamento, dada a natureza deste e a tutela constitucional das entidades familiares que refogem ao modelo matrimonial, cujos exemplos salientes são as famílias monoparentais ou quando a pessoa integra família dirigida por algum parente (avô, tio, irmão mais velho, etc.). Monogamia significa interdição a outro casamento, mas não a outra entidade familiar (LOBO, Paulo. 2014, p. 167).
É importante salientar que se o Estado negar direitos à uma família em detrimento de outra, apenas sob fundamento de que o ordenamento jurídico não prevê a possibilidade de famílias simultâneas, fere radicalmente a dignidade humana da família protelada.
Como dito anteriormente, são duas as formas de constituição de famílias simultâneas. Pode haver a constituição de um casamento paralelamente a uma união estável, ou pode ocorrer o estabelecimento de duas ou mais uniões estáveis concomitantemente.
Portanto, diante da omissão legislativa para regular as famílias simultâneas, o Poder Judiciário deve encontrar soluções de conflito com base nos princípios constitucionais basilares que regem o Direito de Família.
O Superior Tribunal de Justiça enfrentou situação ocorrida no Estado do Rio de Janeiro em que o sujeito, após constituir união estável com uma mulher, constituiu nova união com outra, que pleiteou o reconhecimento da união para fins de herança.
O Tribunal de Justiça do Estado reconheceu a segunda união estável como putativa, sujeita, portanto, a direitos hereditários. No entanto, o STJ negou reconhecimento da segunda união estável, sob o argumento de que é impossível constituir uma segunda união estável concomitante com a anterior, pois seria o mesmo que se admitir pluralidade de casamentos, in verbis:
União estável. Reconhecimento de duas uniões concomitantes. Equiparação ao casamento putativo. Lei nº 9.728/96. 1. Mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo. 2. Recurso especial conhecido e provido (STJ, REsp 789.293/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16/02/2006, DJ 20/03/2006, p.271).
Posteriormente, o STJ enfrentou novamente o tema, sendo publicados os Informativos 435 e 446 do STJ, onde também se entendeu pela impossibilidade de se estabelecer uniões estáveis plúrimas.
Ocorre que negar direitos à uma família em detrimento de outra fere uma série de princípios, como a dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar, igualdade, respeito à diferença, pluralismo familiar e afetividade. Dessa forma, negar a existência de famílias simultâneas é um descompasso com as garantias fundamentais.
Melhor seria o Estado regulamentar as diversas formas de constituição de famílias simultâneas, a fim de garantir segurança jurídica à situação.